terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A bússola

Andava oscilante pelo deserto. Nenhuma referência no horizonte. Apenas areia. A areia é a síntese do deserto: seca, traiçoeira e imensurável. O clima, pelomenosmente, era brando. Apenas dois fas e um mi. As rajadas de vento eram constantes mas acolhedoras, como a música do caminhão de gás em uma segunda de manhã. Olhou para trás para estimar quanto já havia percorrido. Via apenas uma imensidão de areia e algumas pegadas recentes; as antigas haviam sido acolhedoramente apagadas. Virou-se novamente para frente e avistou, ao longe, um punhado de grãos de areia mais escuros. Decidiu caminhar até eles. Aos poucos, os grãos foram tomando a silhueta de um espantalho, depois de um manequim e, finalmente, de um homem. Era um homem de estatura mediana, mas o fato dele usar uma cartola deixava-o substancialmente mais alto. Também trajava um paletó escuro por cima de um colete quente com alguns naipes bordados. Seus sapatos pareciam alguns números maiores o conhecimento popular palpitaria. No rosto, ostentava um vigoroso bigode loiro e olhava através de dois monóculos. Anunciou, jovialmente:

"Olá jovem viajante! Seja bem vindo ao meu humilde baazar! Tenho aqui todo tipo de item pelo qual você pode ter interesse! Você sabia que absolutamente tudo que vendo aqui na minha tenda eu encontrei aqui nesse mesmo deserto? Esse lugar é recheado de surpresas e tesouros, basta voce saber procurar! Vejo que você parece perdido, tenho aqui algo perfeito para você! Essa belíssima bûssola de cobre escandinavo! Eu mesmo usei por muitos anos, na verdade ainda uso, tenho várias em casa! Mas você deu sorte por eu ainda ter uma aqui bem guardada, elas costumam acabar rápido! Toma! Você certamente vai fazer grande proveito dela! Obrigado pelo pagamento! Volto sempre que você precisar de alguma coisa!"

Tirou do paletó uma pequena caixa de presente embrulhada com uma fita dourada e entregou-a nas mãos do viajante. No momento em que o viajante abaixou a cabeça para olhar seu presente, o vendedor já havia sumido, deixando ele novamente a sós com a areia. Andou um pouco, pensando ainda em seu excêntrico encontro até que parou e olhou para o objeto em suas mãos. Cuidadosamente retirou a fita do embrulho, tirou a tampa de cima e colocou a mão dentro da caixa.  Estava vazia. Curioso, levantou então a caixa até a altura dos olhos para examiná-la melhor. Viu seu próprio reflexo. O fundo era espelhado.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Não é por andar com livros que a gente vira doutor


Melhor assim. Homens são seres orgulhosos e arrogantes, dão muita importância para títulos vazios e esquecem-se da essência da vida. Usam papéis e palavras como armas de pedantismo. Louvam demais honrarias e protocolos. Passam séculos debatendo "direitos" e não pensam duas vezes antes de pisotear nossa espécie num banheiro sujo. Hipócritas. Mal sabem eles que vão morrer todos iguais, amassados contra o chão por uma força poderosa, tal qual eles mesmos fazem conosco. Estivemos aqui milhões de anos antes deles e estaremos milhões de anos depois, quando eles, seus títulos e suas palavras tiverem desaparecido completamente da existência. Quando esse dia chegar, todos esses livros que acumularam conhecimento por séculos vão ser uma única coisa: comida para traças. E não vamos sabe-los de cor.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Adimplencia


O adimplente era um cara que pagava as contas em dia. Sem atraso, sem enrolação. Metódico, quase burocrático. Nem por isso deixava de lado a inspiração. Essa, na verdade, era o combustível de tudo isso.  Nunca deixava as coisas para depois. Jamais foi procrastinador, mas raramente precrastinava. Só fazia. Crastinar é fazer. Um gênio uma vez disse: uma obra atrasada pode, eventualmente, ser boa. Uma obra ruim é uma obra ruim. Mas todo mundo diz muita coisa. O que impede alguém de ser adimplente? Um homem é tão feliz quanto sua capacidade de resolver seus próprios problemas. O adimplente foi o cara que parou de ser inquilino de si mesmo, decidiu ser feliz.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Fila

Pessoas esperam em uma fila.

-É aqui a fila?
-Sim.
-Ótimo, achei que tinha me enganado.
-É aqui mesmo.
-Há quanto tempo você tá aqui?
-Eu não saberia dizer.
-É? Você acha que vai demorar muito?
-Não sei.
-Mas tá andando rápido pelo menos?
-Não prestei atenção.
-Não quero perder meu tempo aqui.
-Besteira. Todo mundo tem que pegar a fila.
-Eu sei, mas não queria fazer isso agora.
-Ninguém quer.
-Nem todos. Você parece não se incomodar.
-Por que deveria? É só uma fila.
-Mas você não tá nem ansioso pra chegar sua vez?
-Daqui a pouco chega, é só esperar.

Não havia relógios mas algum tempo se passou.

-Deve ter alguma coisa errada, ainda não nos mexemos.
-É assim mesmo.
-Não é possível que seja assim, eu vou descobrir o que tá acontecendo.
-Quando descobrir me avisa.

...

-E então, como foi?
-Olha, eu falei com muitas pessoas da fila, que também estavam esperando.
-E o que descobriu?
-Acho que ela é assim mesmo, tem que esperar.
-Eu te falei. Basta esperar.
-É, foi o que todos disseram.
-Sim.
-Só uma coisa que não entendi direito, que ninguém soube me explicar muito bem.
-Diga.
-O que exatamente devemos esperar?
-Ué, estamos esperando chegar a nossa vez na fila.
-Sim, mas e aí? O que acontece quando chega a nossa vez?
-Quando chega nossa vez a gente não precisa mais esperar.

Nem os relógios saberiam dizer quanto tempo se passou, mas a vez deles chegou. Depois de toda
essa espera, finalmente era a hora de descobrir o que os aguardaria no final da fila. Olharam-se uma última vez e caminharam confiantemente. Na sua frente, havia apenas uma pequena mesa redonda de madeira, que servia de apoio a uma máquina da qual saiam papéis. Cada um puxou um. Era uma senha.

Pessoas ordenadamente esperam em uma fila.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Bem comum

São 6:02 e o dia de trabalha acabou de começar. Centenas de homens engravatados e carecas infestam a grande e bem iluminada sala. O barulho é ensurdecedor. Gritos, telefonemas, campainhas, alarmes, clicks. Incessantemente correm os homens, carregendo pilhas de papéis enquanto tentam abrir caminho pela multidão. Sem pausas para tomar fôlego, eles checam emails, leem cartas e atendem telefonemas. As mensagens chegam ininterruptamente: "Não vejo a hora de acabar" "só mais 5 minutinhos" "espero que passe voando" "um segundo, já vou"  "assim eu vou chegar atrasado" "bem que podia chegar logo". No centro da sala, um gigantesco relógio de mármore bate sem parar, ao qual os homens dirigem seus olhares preocupados a todo instante. Todos gritam em direção a um pequenino homem barbudo, sentado num banquinho ao lado do relógio, que gira uma velha manivela de madeira continuamente. Só se ouvem duas coisas no ambiente: "Mais rápido!". "Mais devagar!". Nenhum dia de trabalho é fácil no Ministério do Tempo.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A vida é feita de títulos

A vida é feita de momentos. É uma coisa até que óbvia, o tempo é a somatória de momentos. Mas não fale isso prum físico, porque essa frase perde totalmente sentido no ambiente científico. A vida é feita de fórmulas. É provavelmente o que esse mesmo ambiente pensa, e faz perfeita direção, visto que todo o mundo é regido por componentes químicos e leis matemáticas descritas por fórmulas. Para alguns, capazes de encontrar padrões em tudo, isso é óbvio. A vida é feita de certezas. Mas essa percepção não é onipresente. Outros, talvez menos objetivos e mais desiludidos, pensem de forma oposta. A vida é feita de acasos. Uma série incalculável de acasos em sequência leva a um encontro. Certo, certo? Afinal, a vida é feita de encontros. Uma grande figura da cultura disse isso. E esse é apenas mais um entre tantos dizeres famosos na história. A vida é feita de frases. Ou a vida é feita de histórias? Difícil afirmar, certamente pode-se dizer que ocorre o inverso, o que realmente importa é o que está por vir. A vida é feita de expectativas. Mas esperar demais pode impedir que se aproveite o presente, algo que ninguém deseja. A vida é feita de desejos. Sendo assim, qual o objetivo desse autor, passar a mensagem que a vida é feita de desejos? Ou ainda, mostrar que a vida é feita de mensagens? Pior, mostrar que a vida é feita de perguntas? A vida é feita de exclamações! A vida é feita de textos semi-pretensiosos mal escritos. A vida é feita de autocrítica. A vida é feita de insegurança intelectual... A vida é feita de momentos repentinos de autoconfiança! A vida é feita de revelações! Que a vida é sua e que você tem o poder de fazer com ela o que quiser. A vida é feita de possibilidades. Infinitas possibilidades. A vida é feita de infinitas possibilidades difertentes? Afinal, a vida é feita do quê exatamente?



A vida é feita de qualquer coisa que você colocar aqui. "A vida é feita de" é só uma frase genérica que você aplicar para tudo e ainda assim vai parecer que você emitiu uma máxima incontestável.






























Obs: A vida é feita de obervações.


domingo, 21 de setembro de 2014

O Vendedor de Pentes

A maneira como um indivíduo arranja as palavras ganhar e vida na frase revela muito de como eles enxergam a existência, o que cada um deseja; pessimistas querem ganhar da vida, ambiciosos ganhar na vida, esforçados ganhar a vida e miseráveis ganhar vida. Nosso vendedor é um homem que ganha a vida vendendo pentes.  Todo dia ele levanta da cama às quatro e trinta e dois da manhã (o despertador está ajustado para tocar as quatro e meia, mas ele passa alguns minutos se espreguiçando). Toma um banho, toma um café, prepara seu lanche e prepara sua cesta de pentes. Calça seus chinelos azuis da sorte (ele só tem esse par de chinelos) e segue seu caminho em direção ao trabalho.

São cinco e quinze da manhã. Na praia, há apenas areia, o mar, ele, conchas, sujeira e algumas pessoas. Ele sorri, é um grande dia. Se aproxima de uma mulher. Uma potencial cliente, a primeira do dia talvez. Afinal, todo mundo precisa de um pente. Ela usa um casaco rosa, um boné branco, tênis de corrida e um aparelho do qual sai música conectado aos ouvidos. Ele corre ao seu lado. Bom dia atleta! O que você acha de comprar um pente? Tenho diversas cores, inclusive rosa. Ela fez um gesto negativo com a mão aberta. Provavelmente nem ouviu o que ele disse. Outros clientes virão.

Aos poucos, a praia vai se enchendo de pessoas. Ele se aproxima de um jovem garoto de boné. O garoto fazia um castelo de areia a beira do mar, naquela região onde a maré chega apenas as vezes. Ei menino! O que acha de comprar um pente? O garoto respondeu que não tinha dinheiro, pois tinha apenas seis anos de idade. Tentou mudar seu público alvo e foi em direção ao pai, que olhava desconfiado de uma cadeira a alguns metros. Usava óculos escuros, trajava bermuda florida e vestia um imponente bigode. Belo dia senhor! Um dia melhor ainda para se comprar esse belíssimo pente de cabelo! O homem de bigode ficou furioso e pediu-se para ele se retirar, por meio de palavrões. Não era a primeira vez que um cliente careca reagia desse jeito.

Aproximou-se de uma senhora de alguma idade que estava tomando sol de bruços. Colocou os pentes de cores mais claras e com detalhes floridos na parte de frente da cesta, como foi instruído a fazer no curso de vendas. Agachou-se ao lado da espreguiçadeira. A senhora tem um cabelo radiante, mas acredito que ficaria ainda melhor se penteado com alguns desses pentes. A senhora abriu os olhos, encarou o sorriso do vendedor, olhou para a cesta de pentes, voltou para o vendedor e virou o pescoço para o outro lado, tentando pegar no sono novamente.

Deu uma olhada na cesta de pentes. Estava idêntica a cesta de manhã, um pouco mais suja talvez. Olhou seu reflexo no vidro de uma perua. Seu sorriso permanecia o mesmo. O Sol se punha atrás do Mar, fazendo um pôr-de-sol bastante bonito. Um bom escritor ou poeta certamente saberia descrever esse cenário de uma maneira bastante agrádavel e lúdica ao seu leitor. Ele não lia muitos livros (nem poucos, nem nenhum) mas achou a cena bastante bonita também. Ficou um bom tempo parado admirando a praia.


Ele não era muito bom vendedor.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O Garçom

-Boa noite senhor, seja bem-vindo à casa. Meu nome é garçom e eu serei seu garçom esta noite. Em que posso servi-lo?
-Boa noite, eu gostaria de dar uma olhada no cardápio.
-Um momento, por favor.

.

-Aqui está, senhor.
-Obrigado.

..

-Eu gostaria de pedir o filé mignon ao molho madeira com risotto parma.
-Verei o que pode ser feito, senhor.

...

-Aqui está. Um belíssimo salmão à provençal acompanhado de cuscuz marroquino.
-Garçom, receio que tenha havido um engano, esse não foi meu pedido.
-O senhor está correto. No entanto, não há nada que eu possa fazer.
-Como assim?
-Aqui no restaurante nós temos a filosofia de sempre fazer o melhor para o cliente. Estamos certos de que o salmão despertará mais seu paladar que o filé. Por isso, não podemos deixar que o senhor escolha seu prato. Além do mais, carne vermelha não é muito saudável nessa idade e o risotto tem bastante colesterol. Só estamos fazendo o melhor para o senhor, senhor.
-Mas isso não foi o que pedi. Eu gostaria do filé com risotto.
-Eu compreendo senhor e insisto: coma o salmão, ele irá agradá-lo.

..

-Hum.

.

-E então, senhor?
-Realmente, estou surpreso. O prato está bastante apetitoso. O salmão está perfeitamente temperado, em uma mescla de acidez e frescor. O molho por sua vez possui uma pitada de prepotência presumida, mas não deixa de lado uma certa nostalgia frutada. O cuscuz, por outro lado, parte tanto do surrealismo azeitado quanto da lucidez agridoce para convergir em um único sabor adocicado de orvalho.
-Foi o que imaginamos. Agora o senhor aprova nossa filosofia?
-Não.

sábado, 6 de setembro de 2014

Toda argumentação é uma definição de conceitos

Quando duas pessoas discutem se A é ou não é B, elas estão na verdade tentando definir B e, posteriormente, se A se enquadra nessa definição. A maior parte das discussões é inconclusiva justamente porque as pessoas tem definições de B diferentes.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Altertítulo

O ser humano habita simultaneamente dois meios, alteridade e realidade. O primeiro é exclusivo e singular para cada indivíduo. Ele está constantemente sujeito a transformações radicais, reversíveis e instantâneas. Nele o ser humano desfruta de um alto grau de liberdade. O segundo é seu oposto. É coletivo a todos indivíduos, suas transformações são processos burocráticos e a liberdade é severamente limitada. Não há alguém que fuja desses dois meios e todos estamos em eterna transição entre eles.

A alteridade é infinitamente mais agravável que a realidade.

Não é surpreendente que alguns passem grande parte do seu tempo nesse meio. As pessoas tendem a achar o outro insuportável. Por isso, o que cada indivíduo faz é tentar transformar o meio coletivo no seu meio individual. Toda ação planejada de um indivíduo na vida tem como objetivo aproximar-se desse meio. A satisfação pessoal está intrinsecamente ligada ao êxito dessas ações.

A vida pode ser resumida como bilhões de pessoas simultaneamente tentando transformar a mesma realidade em bilhões de diferentes alteridades.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O Contador de carneiros

Era um bom emprego. Contar carneiros não é difícil. É igual contar números, só que ao invés de números, carneiros. Falando assim parece mais complicado do que é, mas não é complicado. Contar carneiros é fácil. Difícil mesmo é conseguir ser demitido desse emprego. Eu consegui. Meus amigos riram quando eu contei que fui demitido. Eu ri com eles na hora, mas depois fiquei triste. Gostava muito do meu emprego. Sinto falta dele. Eu ajudava as pessoas. A maioria tinha problemas pra dormir, então me ligava pra eu ajudar elas. Eu ia na casa delas, sentava do lado da cama numa cadeira ou num banco, dependia da casa na verdade uma vez até sentei numa poltrona na casa de um senhor narigudo foi bem gostoso ela era vermelha. Bem que eu queria voltar lá mais algumas vezes mas agora não posso mais. Tudo começou porque fiz uma coisa que não devia. A maioria dos erros começam assim. Na verdade, acho que essa é a definição de um erro. Não sei, não sou filósofo. Sou um contador de carneiros. Pelo menos eu era, até cassarem minha licença. Por justa causa, é verdade. Fiz a única coisa que minha profissão não permite. Sabia que não devia ter aceitado aquele chamado. Meu telefone tocou no meio da madrugada. Tinha acabado de sair da casa de um homem nervoso, mas fiz ele dormir antes mesmo de chegar na casa do milhar. Na mesma noite, tinha feito uma criança cabeluda pegar no sono na casa da centena. Pensei em terminar o dia e ir pra casa. Ia desligar ali mesmo, não gosto de trabalhar com sonilóquios, a fala deles quando eles começam a entrar em sono profundo me desconcentra, e eu perco a contagem, aí preciso recomeçar e isso atrapalha todo o fluxo de sono deles e o trabalho não fica tão bom como eu gosto que fique. Mas ele parecia muito machucado pela insônia e eu tava me sentindo bem então eu aceitei. Toquei a campainha e um homem alto atendeu a porta. Era o mesmo do telefone, me indicou o quarto e pediu pra eu sentar. O quarto era pequeno mas tinha uma cama de madeira grande. A cadeira era de plástico. Comecei a contar assim que ele terminou de tomar o chá dele. Estava indo tudo bem e mais ou menos quando tinham trezentos e dezessete carneiros ele dormiu de vez. Contei mais um pouco, só pra garantir. Quando cheguei perto dos quatrocentos e sessenta e três carneiros as coisas começaram a ficar um pouco estranhas. Meu ritmo de contagem estava mais lento que o normal. Decidi aumentar o ritmo, e contei os próximos carneiros com mais energia. Mas em pouco tempo o ritmo caiu de novo. Não consegui entender o motivo. Com certeza ele não mentiu quando falou que era sonilóquio, o tempo todo ele emitia sons com a boca, mas não dava pra entender nenhum deles. A maioria das pessoas faz isso, só alguns poucos realmente falam frases compreensíveis, e esses barulhos não me atrapalham pra contar. Então não sei direito. Voltei a contar de onde parei, mas a partir de aí as coisas começaram a ficar nebulosas. Pouco a pouco fui encostando a cabeça na cadeira e meus olhos pesavam muito. Já não tinha mais vontade de continuar contando e a cadeira estava muito confortável. Parecia a poltrona vermelha. Na minha cabeça tudo que eu conseguia era imaginar era uma poltrona vermelha numa grande colina verde. Fiz a única coisa que eu não podia. Dormi.

Acordei com alguns fiscais no quarto. Já era de manhã, mas o homem alto continuava dormindo. Pediram para eu entregar meu crachá e sair do quarto em silêncio. Fiz o que me pediram. Estava muito triste. Triste por não ter feito um bom trabalho. Triste por ter perdido o emprego. Triste comigo mesmo. Isso foi há mais de 2 meses e eu não consigo parar de pensar nisso tudo. Eu ainda não sei o que aconteceu naquela noite. E os barulhos do homem também não saem da minha cabeça. Eram todos meio parecidos, mas só lembro bem dos últimos. Eu até tentei escrever, mas não faz sentido nenhum. Era alguma coisa tipo: "uonetauzendifórtitiuxipis uonetauzendifórtitrixips"

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Dois caranguejos

Era uma vez dois caranguejos. Um dia, se encontraram na mesma praia. Pensaram em travar um diálogo, mas, com receio que isso parecesse inverossímil, decidiram apenas agir como animais, cabendo aos banhistas interpretar e analisar sua ações animalescas. O primeiro deu dois passos para a esquerda. O segundo pressionou uma garra conta a outra. O primeiro voltou, com um passo para a direita. O segundo deu então três para a esquerda. Perceberam depois disso que ambos eram intelectualmente privilegiados e cogitaram iniciar uma partida de xadrez. O primeiro começou a desenhar o tabuleiro na areia com um graveto enquanto o segundo coletava tampas de garrafa para serem usadas como peças. Começaram o jogo. O Segundo moveu-se primeiro, queria dominar o meio e avançou o peão até a metade do campo. O primeiro moveu-se em seguida, e respondeu com um cavalo em frente ao seu bispo. Fazia um bonito dia de sol na praia enquanto o jogo fluidamente evoluía. O primeiro comeu outro peão com sua rainha, e fez um pequeno comentário sobre como peões eram inúteis porque só se moviam numa única direção. O segundo pensou em contra-atacar com a torre, o que colocaria a rainha em xeque. Mas, assim que pegou na peça com suas grandes garras, parou por um momento, olhou para seu amigo, olhou para a peça, abaixou-a lentamente até sua posição inicial e falou: "Olhe para nós. O que nos diferencia de um peão? Temos andado na mesma direção desde que nascemos. Presos nesse tabuleiro gigantesco que é o mundo. Somos apenas mais uma peça. Invejamos peças maiores tal qual o peão inveja um bispo ou uma torre. E nem ao menos gozamos da esperança de chegar no final do tabuleiro e podermos nos transformar no que quisermos. Sabe o que nos espera no final do tabuleiro? O bico de uma gaivota ou a boca de um homem. Somos piores que peões." Andou lateralmente até o mar, visivelmente abalado pelos pensamentos. O primeiro permanecia parado ao pé do tabuleiro, pensando em tudo que foi dito. Após algum tempo de reflexão, decidiu juntar-se ao amigo. Andou lateralmente até o mar, aproximou-se do amigo e disse: "Pelo menos a gente não come na diagonal". Ambos sorriram, e o sorriso se transformou em risada, e a risada em gargalhada. Riam alto. O segundo riu tanto que caiu de costas na água, o que só intensificou ainda mais as risadas. Nesse momento um banhista caminhava por perto. Apesar de não ouvir muito bem, conseguiu localizar o barulho e voltou seus olhares para a curiosa cena que ocorria na altura de seus pés. Sorriu ao ver os dois caranguejos rindo. O belo jogo de cores entre os cascos alaranjados e o azul esverdeado das ondas do mar deixava a cena ainda melhor. Decidiu eternizar a cena. Era bonita demais para ser só dele.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Assalto

Uma jovem andava por uma rua. Um outro jovem, levemente mais velho, com uma meia preta na cabeça e uma jaqueta preta no resto do corpo se aproxima.

-Isso é um assalto.
-Ai meu Deus! Só não me machuca por favor!

Uma das mãos dele ia por dentro do bolso do jaqueta, segurando um aparente volume apontado para ela. A outra mão estava apontada para baixo com a palma aberta, tentando passar confiança para ela, como ele havia lido num livro sobre linguagem corporal.

-Fica parada ae. Não se mexa e tudo vai ficar bem.
-Não vou! Pode levar o que você quiser!
-Não faça nenhuma besteira.

Alguns segundos se passaram. Ambos permaneciam estáticos, mirando-se fixamente. Ele sereno, mas segurando a arma com convicção. Ela aflita, e suando muito.

-...
-...

Continuavam olhando-se compenetradamente. Ele estava frio como uma estátua de mármore. Ela estava quente como uma estátua igual a dele, só que feita de bronze e numa praça com bastante sol.

Um minuto se passou. Para ela, parecia uma eternidade. Para ele, parecia um minuto.

-...
-Eu tenho celular e carteira! O celular não é muito novo, mas acho que ainda vale uns 100 reais! Eu só tenho o dinheiro da condução, mas to com o cartão e posso sacar dinheiro se você quiser! Tem um caixa aqui na rua de...
-Para de falar.

Ela parou. Receava ter cometido um deslize mortal. Suas mãos tremiam. Suas pernas oscilavam. Gotas de suor escorriam pelo seu rosto. Sua garganta complemente seca.Sua barriga estava endurecida.

Suas pupilas encolheram ainda mais quando ele começou a mexer no bolso do casaco. Mantendo frieza e placidez ele calmamente foi retirando o objeto de dentro da jaqueta.

Ela entrou em choque. Ficou imobilizada. Fechou os olhos. Mil filmes passaram pela sua cabeça. Mil sensações ativaram seus sentidos. Pensava em tudo. Não conseguia pensar em nada. Aquele momento era uma infinita luz branca.

Abriu os olhos. Viu seu algoz com o objeto na mão. Ele olhava-o determinadamente. Ela, num surto de valentia, decidiu espiar.

Era uma ampulheta.

-O QUE VOCÊ TA FAZENDO!?!
-Assaltando.
-VOCÊ É UM IMBECIL! Que tipo de pessoa faz isso!! Por que você ta segundo uma ampulheta!?
-É o que costumo usar. Cronômetros ainda são bem caros. E relógios digitais irritam a pele do meu pulso.
-Que!? Para de brincar comigo! Termina com isso logo! Me mata de uma vez.
-Matar? Você tá maluca? Eu tenho cara de assassino?
-Eu talvez soubesse se você não andasse com uma meia na cabeça assustando pessoas na rua. Ai meu Deus, que desperdício. Você não vai me assaltar né? Eu deveria ter percebido quando você não pediu nenhum dos meus pertences.
-Já assaltei.
-Assaltou o que? Minha paciência? Meu tempo?
-Sim, esse foi um dos que mais rendeu, foram quase 8minutos.
-Era isso que você queria? Fazer eu perder meu tempo?
-Roubar seu tempo.
-Você além de imbecil é burro! Se você fosse uma pessoa normal poderia ter me convidado pra comer um pão na chapa, ia durar muito mais tempo,e ainda me pouparia de toda essa maluquice.
-Eu sou um ladrão. Não sou um mendigo. Meu negócio é assaltar, não ficar aceitando doações.
-Isso nem faz sentido! Porque enquanto você rouba meu tempo, você também gasta o seu! É como se um assaltante normal roubasse 40reais de uma vítima, mas precisasse gastar 40reais de táxi pra chegar no local do crime.
-Tempo não é dinheiro! Quem disse que os minutos que eu roubei de você valem o mesmo que os segundos que eu fiquei no assalto? Você é uma jovem estudante de medicina, eu sou um ladrão. Seu tempo é muito mais valioso que o meu.
-É isso que você faz da vida? Fica desperdiçando o tempo das pessoas que tem mais o que fazer?
-Desperdiçando não, roubando.
-Desperdiçando sim, isso nem crime é. Ou você pode ser preso por isso?
-Nunca me pararam, mas também nunca fui pego em flagrante. Não sei direito. Depende da nossa constituição, se ela considera ou não o tempo como uma propriedade individual, nesse caso talvez possa ser caracterizado como crime, mas também...

Ela avistou um sujeito andando do outro lado da rua. Era alguns anos mais velhos que ambos juntos. Trajava um uniforme policial, um quepe da polícia e botas altas. No seu cinto estavam algemas e um cassetete. Gritou alto sua direção, pedindo ajuda.

O sujeito se aproximou.

-Pois não, senhorita.
-Graças a Deus o senhor chegou! Esse homem aqui acaba de me roubar quase 20minutos!
-E o que você quer que eu faça a respeito disso?
-Prenda-o! Você é um policial!
-Me desculpa, mas eu não sou policial não.

O jovem e a jovem se olharam com cara de dúvida. O outro jovem menos jovem que os outros dois trajava roupas de policial, usava quepe de policial, carregava distintivo de policial e inclusive tinha um bigode de policial. Perguntaram simultaneamente.

-Você é o quê então?
-Um cidadão à paisana.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Bar

Um cara entra num bar:

-Um cerveja por favor.
-Beleza.
-Quantas dessa voce já serviu hoje?
-17.
-Voce costuma contar?
-Sim, eu mantenho um banco de dados de tudo que sirvo aqui no bar; gosto de investir meu tempo livre olhando e comparando essas estatísticas, tenho um registro completo há mais de 14 anos com todas bebidas que já servi, para quem elas foram servidas, se me foi feito algum pedido diferente da receita, quanto recebi de gorjeta em cada um, quanto era cobrado na época; posso traçar um perfil completo dos preços de cada tipo de bebida ao longo dos anos, e é possível estabelecer alguns paralelos com mudanças na economia, na política e até mesmo no futebol, um exemplo pra voce: como voce pode observar, não há nenhuma televisão aqui no bar, apesar disso, as gorjetas são mais generosas quando os times da cidade vencem, especialmente na quinta e na segunda; já as mulheres tem uma tendência a pedirem bebidas mais pesadas as terças-feiras, mas essa eu ainda não consegui descobrir o motivo; algo curioso que constatei: a maior parte das pessoas quando pede um whisky diz somente: "por favor, um whisky" e eu naturalmente sirvo o whisky à moda da casa, num copo baixo com duas pedras de gelo, mas se a noite estiver curiosamente fria as pessoas enfatizam: "por favor, um whisky com gelo", acho que elas tem receio de que eu mude as receitas de acordo com a temperatura; eu tenho alguns gráficos no depósito, posso te mostrar depois se voce quiser
-É um hobbie certamente inusitado.
-Esse não é meu hobbie! Meu hobbie consiste em transformar essas estatísticas em rankings; terça passada por exemplo, foi a segunda vez na história em que 5 ou mais pessoas de boné sentaram-se simultaneamente nos bancos do bar; e no mês passado tivemos o record de cervejas servidas em uma hora, 46, quando um grupo de alemães estava aqui.
-Os alemães bebem bastante né?
-Na verdade, os alemães pediram só água e alguns isotônicos, eram ciclistas e tinham competição no fim de semana. Quem pediu a maior parte delas foi um grupo de jovens de cabelo raspado e cara com tinta, possivelmente recém admitidos na faculdade, um homem com problemas no casamento ao julgar pela maneira como ele olhava pro anel de noivado, e um outro homem que provavelmente não tinha nenhuma expectativa de vida e queria apenas embriagar-se, se analisarmos o que ele disse após fazer seu pedido: "não tenho nenhuma expectativa de vida e quero apenas ficar embriagado". No entanto, o record ficou memorizado na minha cabeça pela bandeira da Alemanha que os alemães traziam nas costas.
-Você gosta da bandeira da Alemanha?
-Não muito. Acho as bandeiras que consistem apenas em listras horizontais ou verticais bastante acriativas e não gosto da maneira como as cores estão ordenadas, eu inverteria o vermelho com o amarelo.
-Qual sua bandeira preferida?
-A da Macedônia, gosto da simplicidade das cores e da da imponência com que os raios de sol se extendem por ela. E a sua?
-Não sei. Nunca pensei nisso.

domingo, 4 de maio de 2014

O Templo

Olhava o mar. Era uma manhã agradável de outono. Segundo seu horóscopo no jornal, seria um dia de grandes descobertas. Mas ele preferia a sessão de esportes, e sua única descoberta foi que seu time empatou fora de casa. Sentava numa pedra enquanto a manhã era agradável e olhava o mar. Gostava de fazer isso. Quando era mais novo, pegava o despertador do quarto do pai e colocava para quinze minutos antes do nascer do sol. Acordava num pulo enquanto o céu começava a trocar o preto pelo roxo e o roxo pelo azul. Ia correndo descalço pelas pedrinhas da trilha e as folhas molhadas de orvalho acariciavam seu corpo. Toda essa ansiedade sumia assim que a pequena mata acabava abruptamente e ele podia finalmente, do topo de um conjunto de pedras aos pés da água, ver o sol cumprimentar o mar. Sentava-se na mesma pedra que estava sentando agora, seu formato excepcionalmente achatado e largo e o fato de ela estar apoiada numa outra pedra maior que servia de encosto lhe rendeu o apelido carinhoso de O Trono, apelido que permanecia até hoje, mesmo que agora, passados alguns anos, o nome parecesse ligeiramente menos majestoso e vagarosamente mais infantil. Gostava de pensar que aquele lugar era só seu e de algumas gaivotas curiosas. E até onde sabia, era. Viajava todas férias de verão pra essa mesma praia há quase 20 anos e nunca havia visto ninguém no Templo (esse apelido continuava majestoso e vigoroso, apesar do tempo). Quando pequeno, se embaraçava um pouco para explicar aos amigos porque não podia dormir fora de casa e as vezes sentia um pouco de peso na consciência quando ouvia a mãe brigando com o pai sobre o atraso matinal, mas seu segredo permencia inviolável. Pretendia quebrá-lo um dia, assim que encontrasse a mulher certa para dividir seu pequeno paraíso. Até hoje, nenhuma de suas namoradas lhe convenceu de que estava pronta. Não que tivessem sido muitas, é verdade. A última terminou há pouco mais de uma semana. Insensível! Talvez devesse ter lido mais o horóscopo. Lembrou-se dos olhos vividos da mãe olhando o pai toda vez que ele contava a história de como eram opostos complementares. Desenrolou o jornal. Voltou a enrolá-lo. Viu o sol, que ascendia lentamente por cima das ondas e aquecia mansamente (não timidamente, porque não há astro mais desinibido que o sol) os preguiçosos grãos de areia da praia. Sentiu os primeiros raios de luz acariciarem seu rosto. Abriu um sorriso que quase chegou a uma risada. Aquilo era tao revigorante quanto uma boa noite de sono. Seu dia dificilmente poderia começar melhor.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Escolhas

Era uma manhã ensolarada. Mas isso não fez muita diferença pra ele, já que acordou as 2 da tarde, quando o dia já estava parcialmente nublado. Passou a madrugada lutando contra seus pensamentos, pensando em como o passado e o futuro se fundem numa coisa louca chamada presente. O presente é um presente. Pelo menos é o que a frase em ingles diz, Present is a gift. Pena que essa frase é um lixo em português, mas não dá pra ter tudo na mesma língua. Quando o capitão do time de português tirou timinho com o capitão do time inglês, escolheu a saudade primeiro. Também tomou algumas decisões ruins, como definir inadimplente como devedor e não como filho da puta ou algo pior. Tinha potencial, hoje é desperdiçada em reuniões de banco pra se referir a uma parcela de clientes. Mas quem realmente levou a melhor foi o time alemão, que ficou com a habilidade de juntar palavras pra criar uma nova com significado único. Isso veio ao custo de uma fonética agressiva, mas acho que valeu a pena. Se eu falasse alemão só ia inventar minhas próprias palavras. Não sei se é particularmente assim que funciona, se só funciona para adjetivos ou se eu ia parecer um imbecil falando desse jeito. Talvez antros. Antros é uma das palavras que o capitão do time de português perdeu a chance de escolher. Pra quem desconhece o significado, antros é o equivalente a ambos, mas para 3 termos. Falando em antros, quase me esqueci de voltar ao protagonista (a profissão dele é antropólogo). Na verdade, eu nem pretendia faze-lo. Os protagonistas e as histórias são só álibis (temos essa palavra e não antros) para que nós narradores possamos expor nossas próprias ideias. E nós, por nossa vez, somos só álibis dos autores, que exploram nossas vozes aveludadas para darem um tom grandioso e eloquente à sua imaginação acriativa (essa a capitão acertou em não escolher).