quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Altertítulo

O ser humano habita simultaneamente dois meios, alteridade e realidade. O primeiro é exclusivo e singular para cada indivíduo. Ele está constantemente sujeito a transformações radicais, reversíveis e instantâneas. Nele o ser humano desfruta de um alto grau de liberdade. O segundo é seu oposto. É coletivo a todos indivíduos, suas transformações são processos burocráticos e a liberdade é severamente limitada. Não há alguém que fuja desses dois meios e todos estamos em eterna transição entre eles.

A alteridade é infinitamente mais agravável que a realidade.

Não é surpreendente que alguns passem grande parte do seu tempo nesse meio. As pessoas tendem a achar o outro insuportável. Por isso, o que cada indivíduo faz é tentar transformar o meio coletivo no seu meio individual. Toda ação planejada de um indivíduo na vida tem como objetivo aproximar-se desse meio. A satisfação pessoal está intrinsecamente ligada ao êxito dessas ações.

A vida pode ser resumida como bilhões de pessoas simultaneamente tentando transformar a mesma realidade em bilhões de diferentes alteridades.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O Contador de carneiros

Era um bom emprego. Contar carneiros não é difícil. É igual contar números, só que ao invés de números, carneiros. Falando assim parece mais complicado do que é, mas não é complicado. Contar carneiros é fácil. Difícil mesmo é conseguir ser demitido desse emprego. Eu consegui. Meus amigos riram quando eu contei que fui demitido. Eu ri com eles na hora, mas depois fiquei triste. Gostava muito do meu emprego. Sinto falta dele. Eu ajudava as pessoas. A maioria tinha problemas pra dormir, então me ligava pra eu ajudar elas. Eu ia na casa delas, sentava do lado da cama numa cadeira ou num banco, dependia da casa na verdade uma vez até sentei numa poltrona na casa de um senhor narigudo foi bem gostoso ela era vermelha. Bem que eu queria voltar lá mais algumas vezes mas agora não posso mais. Tudo começou porque fiz uma coisa que não devia. A maioria dos erros começam assim. Na verdade, acho que essa é a definição de um erro. Não sei, não sou filósofo. Sou um contador de carneiros. Pelo menos eu era, até cassarem minha licença. Por justa causa, é verdade. Fiz a única coisa que minha profissão não permite. Sabia que não devia ter aceitado aquele chamado. Meu telefone tocou no meio da madrugada. Tinha acabado de sair da casa de um homem nervoso, mas fiz ele dormir antes mesmo de chegar na casa do milhar. Na mesma noite, tinha feito uma criança cabeluda pegar no sono na casa da centena. Pensei em terminar o dia e ir pra casa. Ia desligar ali mesmo, não gosto de trabalhar com sonilóquios, a fala deles quando eles começam a entrar em sono profundo me desconcentra, e eu perco a contagem, aí preciso recomeçar e isso atrapalha todo o fluxo de sono deles e o trabalho não fica tão bom como eu gosto que fique. Mas ele parecia muito machucado pela insônia e eu tava me sentindo bem então eu aceitei. Toquei a campainha e um homem alto atendeu a porta. Era o mesmo do telefone, me indicou o quarto e pediu pra eu sentar. O quarto era pequeno mas tinha uma cama de madeira grande. A cadeira era de plástico. Comecei a contar assim que ele terminou de tomar o chá dele. Estava indo tudo bem e mais ou menos quando tinham trezentos e dezessete carneiros ele dormiu de vez. Contei mais um pouco, só pra garantir. Quando cheguei perto dos quatrocentos e sessenta e três carneiros as coisas começaram a ficar um pouco estranhas. Meu ritmo de contagem estava mais lento que o normal. Decidi aumentar o ritmo, e contei os próximos carneiros com mais energia. Mas em pouco tempo o ritmo caiu de novo. Não consegui entender o motivo. Com certeza ele não mentiu quando falou que era sonilóquio, o tempo todo ele emitia sons com a boca, mas não dava pra entender nenhum deles. A maioria das pessoas faz isso, só alguns poucos realmente falam frases compreensíveis, e esses barulhos não me atrapalham pra contar. Então não sei direito. Voltei a contar de onde parei, mas a partir de aí as coisas começaram a ficar nebulosas. Pouco a pouco fui encostando a cabeça na cadeira e meus olhos pesavam muito. Já não tinha mais vontade de continuar contando e a cadeira estava muito confortável. Parecia a poltrona vermelha. Na minha cabeça tudo que eu conseguia era imaginar era uma poltrona vermelha numa grande colina verde. Fiz a única coisa que eu não podia. Dormi.

Acordei com alguns fiscais no quarto. Já era de manhã, mas o homem alto continuava dormindo. Pediram para eu entregar meu crachá e sair do quarto em silêncio. Fiz o que me pediram. Estava muito triste. Triste por não ter feito um bom trabalho. Triste por ter perdido o emprego. Triste comigo mesmo. Isso foi há mais de 2 meses e eu não consigo parar de pensar nisso tudo. Eu ainda não sei o que aconteceu naquela noite. E os barulhos do homem também não saem da minha cabeça. Eram todos meio parecidos, mas só lembro bem dos últimos. Eu até tentei escrever, mas não faz sentido nenhum. Era alguma coisa tipo: "uonetauzendifórtitiuxipis uonetauzendifórtitrixips"

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Dois caranguejos

Era uma vez dois caranguejos. Um dia, se encontraram na mesma praia. Pensaram em travar um diálogo, mas, com receio que isso parecesse inverossímil, decidiram apenas agir como animais, cabendo aos banhistas interpretar e analisar sua ações animalescas. O primeiro deu dois passos para a esquerda. O segundo pressionou uma garra conta a outra. O primeiro voltou, com um passo para a direita. O segundo deu então três para a esquerda. Perceberam depois disso que ambos eram intelectualmente privilegiados e cogitaram iniciar uma partida de xadrez. O primeiro começou a desenhar o tabuleiro na areia com um graveto enquanto o segundo coletava tampas de garrafa para serem usadas como peças. Começaram o jogo. O Segundo moveu-se primeiro, queria dominar o meio e avançou o peão até a metade do campo. O primeiro moveu-se em seguida, e respondeu com um cavalo em frente ao seu bispo. Fazia um bonito dia de sol na praia enquanto o jogo fluidamente evoluía. O primeiro comeu outro peão com sua rainha, e fez um pequeno comentário sobre como peões eram inúteis porque só se moviam numa única direção. O segundo pensou em contra-atacar com a torre, o que colocaria a rainha em xeque. Mas, assim que pegou na peça com suas grandes garras, parou por um momento, olhou para seu amigo, olhou para a peça, abaixou-a lentamente até sua posição inicial e falou: "Olhe para nós. O que nos diferencia de um peão? Temos andado na mesma direção desde que nascemos. Presos nesse tabuleiro gigantesco que é o mundo. Somos apenas mais uma peça. Invejamos peças maiores tal qual o peão inveja um bispo ou uma torre. E nem ao menos gozamos da esperança de chegar no final do tabuleiro e podermos nos transformar no que quisermos. Sabe o que nos espera no final do tabuleiro? O bico de uma gaivota ou a boca de um homem. Somos piores que peões." Andou lateralmente até o mar, visivelmente abalado pelos pensamentos. O primeiro permanecia parado ao pé do tabuleiro, pensando em tudo que foi dito. Após algum tempo de reflexão, decidiu juntar-se ao amigo. Andou lateralmente até o mar, aproximou-se do amigo e disse: "Pelo menos a gente não come na diagonal". Ambos sorriram, e o sorriso se transformou em risada, e a risada em gargalhada. Riam alto. O segundo riu tanto que caiu de costas na água, o que só intensificou ainda mais as risadas. Nesse momento um banhista caminhava por perto. Apesar de não ouvir muito bem, conseguiu localizar o barulho e voltou seus olhares para a curiosa cena que ocorria na altura de seus pés. Sorriu ao ver os dois caranguejos rindo. O belo jogo de cores entre os cascos alaranjados e o azul esverdeado das ondas do mar deixava a cena ainda melhor. Decidiu eternizar a cena. Era bonita demais para ser só dele.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Assalto

Uma jovem andava por uma rua. Um outro jovem, levemente mais velho, com uma meia preta na cabeça e uma jaqueta preta no resto do corpo se aproxima.

-Isso é um assalto.
-Ai meu Deus! Só não me machuca por favor!

Uma das mãos dele ia por dentro do bolso do jaqueta, segurando um aparente volume apontado para ela. A outra mão estava apontada para baixo com a palma aberta, tentando passar confiança para ela, como ele havia lido num livro sobre linguagem corporal.

-Fica parada ae. Não se mexa e tudo vai ficar bem.
-Não vou! Pode levar o que você quiser!
-Não faça nenhuma besteira.

Alguns segundos se passaram. Ambos permaneciam estáticos, mirando-se fixamente. Ele sereno, mas segurando a arma com convicção. Ela aflita, e suando muito.

-...
-...

Continuavam olhando-se compenetradamente. Ele estava frio como uma estátua de mármore. Ela estava quente como uma estátua igual a dele, só que feita de bronze e numa praça com bastante sol.

Um minuto se passou. Para ela, parecia uma eternidade. Para ele, parecia um minuto.

-...
-Eu tenho celular e carteira! O celular não é muito novo, mas acho que ainda vale uns 100 reais! Eu só tenho o dinheiro da condução, mas to com o cartão e posso sacar dinheiro se você quiser! Tem um caixa aqui na rua de...
-Para de falar.

Ela parou. Receava ter cometido um deslize mortal. Suas mãos tremiam. Suas pernas oscilavam. Gotas de suor escorriam pelo seu rosto. Sua garganta complemente seca.Sua barriga estava endurecida.

Suas pupilas encolheram ainda mais quando ele começou a mexer no bolso do casaco. Mantendo frieza e placidez ele calmamente foi retirando o objeto de dentro da jaqueta.

Ela entrou em choque. Ficou imobilizada. Fechou os olhos. Mil filmes passaram pela sua cabeça. Mil sensações ativaram seus sentidos. Pensava em tudo. Não conseguia pensar em nada. Aquele momento era uma infinita luz branca.

Abriu os olhos. Viu seu algoz com o objeto na mão. Ele olhava-o determinadamente. Ela, num surto de valentia, decidiu espiar.

Era uma ampulheta.

-O QUE VOCÊ TA FAZENDO!?!
-Assaltando.
-VOCÊ É UM IMBECIL! Que tipo de pessoa faz isso!! Por que você ta segundo uma ampulheta!?
-É o que costumo usar. Cronômetros ainda são bem caros. E relógios digitais irritam a pele do meu pulso.
-Que!? Para de brincar comigo! Termina com isso logo! Me mata de uma vez.
-Matar? Você tá maluca? Eu tenho cara de assassino?
-Eu talvez soubesse se você não andasse com uma meia na cabeça assustando pessoas na rua. Ai meu Deus, que desperdício. Você não vai me assaltar né? Eu deveria ter percebido quando você não pediu nenhum dos meus pertences.
-Já assaltei.
-Assaltou o que? Minha paciência? Meu tempo?
-Sim, esse foi um dos que mais rendeu, foram quase 8minutos.
-Era isso que você queria? Fazer eu perder meu tempo?
-Roubar seu tempo.
-Você além de imbecil é burro! Se você fosse uma pessoa normal poderia ter me convidado pra comer um pão na chapa, ia durar muito mais tempo,e ainda me pouparia de toda essa maluquice.
-Eu sou um ladrão. Não sou um mendigo. Meu negócio é assaltar, não ficar aceitando doações.
-Isso nem faz sentido! Porque enquanto você rouba meu tempo, você também gasta o seu! É como se um assaltante normal roubasse 40reais de uma vítima, mas precisasse gastar 40reais de táxi pra chegar no local do crime.
-Tempo não é dinheiro! Quem disse que os minutos que eu roubei de você valem o mesmo que os segundos que eu fiquei no assalto? Você é uma jovem estudante de medicina, eu sou um ladrão. Seu tempo é muito mais valioso que o meu.
-É isso que você faz da vida? Fica desperdiçando o tempo das pessoas que tem mais o que fazer?
-Desperdiçando não, roubando.
-Desperdiçando sim, isso nem crime é. Ou você pode ser preso por isso?
-Nunca me pararam, mas também nunca fui pego em flagrante. Não sei direito. Depende da nossa constituição, se ela considera ou não o tempo como uma propriedade individual, nesse caso talvez possa ser caracterizado como crime, mas também...

Ela avistou um sujeito andando do outro lado da rua. Era alguns anos mais velhos que ambos juntos. Trajava um uniforme policial, um quepe da polícia e botas altas. No seu cinto estavam algemas e um cassetete. Gritou alto sua direção, pedindo ajuda.

O sujeito se aproximou.

-Pois não, senhorita.
-Graças a Deus o senhor chegou! Esse homem aqui acaba de me roubar quase 20minutos!
-E o que você quer que eu faça a respeito disso?
-Prenda-o! Você é um policial!
-Me desculpa, mas eu não sou policial não.

O jovem e a jovem se olharam com cara de dúvida. O outro jovem menos jovem que os outros dois trajava roupas de policial, usava quepe de policial, carregava distintivo de policial e inclusive tinha um bigode de policial. Perguntaram simultaneamente.

-Você é o quê então?
-Um cidadão à paisana.