sexta-feira, 1 de abril de 2016

Par-ou-Ímpar

Dois cavalheiros aguardam silenciosamente o elevador.

...

O elevador finalmente chega:
-Por favor.
-Eu insisto.
-Não, você primeiro.
-Você.
-Vamos tirar no par ou ímpar. Par!
-Ímpar.
-Deu 4, ganhei, você primeiro.
-Pera, eu achei que quem ganhou fosse primeiro.
-Não, o vencedor ganha a oportunidade de deixar o outro ir à frente.
-Pô, se eu soubesse, teria colocado 6 ao invés de 5.
-Eu tava esperando um 6 pra falar a verdade, mas no último instante fui de menos 1 mesmo.
-Menos 1 sempre é uma boa nessas situações.
-É, o curso realmente tem valido a pena.
-Você fez aula de par-ou-ímpar?
-É uma curso de iniciação para jogos de dualidade simultânea.
-O que mais aprendeu fora par-ou-ímpar?
-O curso consiste em 12 aulas, cada uma ensinando os conceitos básicos de doze tipos de jogos  diferentes.
-Bacana, fala mais, quero aprender alguns desses outros.
-São vários! Tem o cadeira-ou-poltrona, onde ganha quem sentar primeiro no móvel que ele escolher. Então você tá no ônibus jogando cadeira ou poltrona com alguém, vale mais a pena falar cadeira nessa situação. Agora imagina você tá numa loja de poltrona, a estratégia é completamente diferente.
-Verdade, faz sentido.
-Outro que eu gosto bastante é o grosso-ou-fino. Funciona assim: ambos jogadores falam "grosso- ou-fino" pro outro alternadamente, até sair o vencedor. Vence quem falar "grosso" mais grosso ou "fino" mais fino. No entanto, o interessante é que a maior parte dos jogos são decididos por quem consegue falar o "ou" mais mediano entre grosso e fino.
-Entendi.
-Tem alguns menos complexos também, mas mesmo esses tem estratégia envolvida. Tipo o dia-ou-noite. Nesse ganha quem acertar se no momento está dia ou noite. É um pouco mais monótono que os outros, já que a maior parte dos jogos dão empate. Então o que muitos jogadores experientes fazem é trancar o oponente num quarto sem janelas por semanas e finalmente desafia-los: a porcentagem de acerto cai de 99% pra 50%. Outra estratégia é entrar em sites de jogatinas online de dia-ou-noite e torcer pra cair contra um jogador internacional. É um dos poucos jogos que resultam numa situação de win-win.
-Interessante esse, agora por exemplo são 3 da tarde aqui no horário de brasília, então está dia, talvez eu consiga ganhar de um oponente que não tenha essa informação, como um chinês.
-Exato, você está aprendendo! Alguns jogos vão até pro campo da meta-física. No sonho-ou-realidade por exemplo, ganha quem acertar se isso é um sonho ou a realidade. Vamos lá: sonho-ou-realidade?
-Hum, realidade.
-Eu acho que é sonho. Então, no momento você está ganhando. Mas imagina que de repente você acorda e descobre que toda essa conversa era um sonho? Nesse caso você teria perdido e eu ganhado. Essa é a graça do jogo:, mesmo que você tenha ganhado ou perdido, não dá muito pra saber! Tem até um famoso caso de um ex-campeão de sonho-ou-realidade que perdeu todos seus troféus quando acabou acordado de um sonho no qual ele tinha jogado e apostado em sonho, num looping de mais de 17 etapas de sonho-ou-realidade. Acordou perdendo todas assim que acordou. Por isso é importante variar a estratégia.
-Animal! To até pensando em me inscrever no próximo. Agora, e dois-ou-um, você não aprendeu?
-Dois-ou-um?
-É. Sabe aquele que ou você coloca 2 ou coloca 1?
-Ahhh! 2-ou-1! Sei sim, eu não sabia que ele era chamado assim também, sempre chamei de 2-ou-1.
-É, na minha cidade chamam de dois-ou-um mesmo.
-Interessante essa diferença, de onde você é?
-Eu nasci na ensolarada 25/12.
-Fui pra lá verão passado, é uma cidade incrível.
-É mesmo.

...

Feixes de luz atravessavam a persiana por uma fresta que ele esquecera de fechar completamente na noite anterior. Do lado de fora, ruídos indistinguíveis anunciavam a tímida manhã de sol. Acordou visivelmente frustrado:
-Não acredito, perdi de novo.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Areia

Caminhava pelo deserto extenuadamente. O deserto era tão vermelho quanto sangue e cada grão de areia espetava os dedos do seu pé descalço como o espinho de uma rosa. Sua língua, a áspera pele de uma cobra coral, suplicaria por água, se tivesse forças para tal. No seu campo de visão apenas duas coisas: o belo pôr-do-sol e as intermináveis dunas do deserto rugô. Exaurido de todas suas forças, cedeu ao clamor de seus joelhos e desmoronou em si mesmo. Após sucessivos sonhos e pesadelos longínquos, acordou ainda mais cansado, sob o Céu, negro, brilhante e acolhedor. Rastejou com a ajuda das estrelas até que uma de suas mãos bateu num objeto, emitindo um som metálico que quebrou a serenidade da noite. Angustiadamente, começou a cavar ao redor do objeto com suas ressecadas mãos, para finalmente retirá-lo da areia. Ainda debruçado sobre a apimentada areia, ergueu o objeto contra a Lua e conseguiu distingui-lo:era uma lâmpada dourada. Intuitivamente, esfregou a lâmpada com a manga de sua blusa e uma fumaça roxa e brilhante jorrou de sua ponta em contínuos movimentos ondulantes. Essa fumaça, inicialmente difusa, começou a acumular-se deformadamente num ponto até tomar a forma de um gênio. O ser celestial fitou o protagonista calmamente, apesar dos braços cruzados sobre o vigoroso corpo azul indicarem o contrário. Depois de uma eterna breve pausa, descruzou os braços e adotou um semblante benevolente. Espalmando a palma de suas mãos disse: "Lamento, mas você está sozinho nessa." Desmanchou-se no ar, deixando apenas uma fina camada de fumaça roxa aos ventos da noite. O protagonista voltou a caminhar extenuadamente pelo deserto.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

História de peixe


Dois peixes se encontram num bar.

-Peixe, cê não acredita o que aconteceu comigo hoje.
-O quê?
-Tava cansado do trabalho, decidi sair pra refrescar a guelra. Fui dar uma volta lá perto dos corais, sabe?
-Sei.
-Correnteza fraca, superfície bonita, tudo tranquilo. De repente, sinto uma agitação forte na água, olho pra cima e vejo uma sombra gigante boiando encima de mim. Achei que fosse um tubarão tigre, então, óbvio, nadei na direção dele pra enfrentar.
-Sim, eu teria feito o mesmo nessa situação.
-Então. Conforme fui chegando perto a sombra ia ficando cada vez maior, cheguei até a pensar que era uma baleia azul ou uma ilha. Quando percebi, era um navio de guerra americano, devia ter umas 1400, 1600 nadadeiras de comprimento.
-1600 nadadeiras?!
-To te falando, era muito grande, segunda vez só que eu vejo um desse tamanho. Mas fica pior. Enquanto eu tava parado olhando o navio, sinto um puxão forte na minha nadadeira, até ficou marca, te mostro depois. Olho pra baixo, e percebo que fui pego por uma rede de pesca.
-Não! E aí, o que você fez?
-Foi difícil, a rede era de aço reforçado e os buracos eram pequenos demais pra eu conseguir fugir por dentro deles. Desesperado, eu comecei a morder uma quina da rede perto da amarra, onde era mais fraca, mas mesmo assim, ela parecia indestrutível. A rede começou a puxar com mais força, eu tava quase na superfície, já dava até pra sentir o calor do sol batendo na minha barbatana! Foi aí então que eu, com a cauda já fora da água, juntei todas minhas forças e mordi a rede uma última vez. Ela finalmente cedeu, eu fugi e consegui mais alguns outros peixes.
-Não acredito! Foi por pouco! Você sabe quem eles são? Eles devem ter ficado muito aliviados.
-Ficaram, não paravam de me agradecer. Falaram que iam enviar presente e me visitar, mas falei que não precisava. Eles são outra região, se não pedia pra eles contarem a história pra você também.
-Pô, que escama, queria conhecer eles.
-É.

-Mas e você, o que tem pra me contar de hoje?
-Peixe, cê não sabe quem tava dando mole pra mim hoje de manhã...

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Noites de verão na Corséga

Eram 6:27 da tarde e ela estava com seu namorado no cinema, assistindo um filme sobre a história de um produtor de eventos esportivos num clube de golf na Córsega recém divorciado e uma jovem executiva que ama Sudoku e está em dúvida sobre suas prioridades na vida frente às novas mudanças de liderança dentro da empresa, que se conhecem por coincidência numa festa de ano novo na praia e que voltam a se encontrar meses depois em uma feira literária, onde ela descobre que ele é, secretamente, o autor de um de seus livros preferidos de infância e tentam conciliar essa nova paixão repentina com suas respectivas rotinas de trabalho. Ficou com vontade de ir no banheiro (ela tinha uma bexiga relativamente pequena comparada a média mundial, segundo recente pesquisa), e pediu passagem para o casal de idosos que estavam sentados ao seu lado, nos primeiros dois assentos ao lado do corredor.  A senhora Vilma abriu um sorriso, e rapidamente encolheu os pés, abrindo espaço suficiente para que uma jovem garota de dezessete anos e estatura mediana pudesse passar sem grandes desconfortos para ambas partes. Já o senhor Venceslau, num gesto rude e particularmente contraditório a expectativa geral da sociedade,  estendeu ambas as pernas e apoiou-as sobre as cadeiras da frente, formando assim uma cancela pela qual a jovem não conseguiria passar tranquilamente. A garota, em visivel estado de confusão e perplexidade, interrogou o senhor com um rápido movimento na sobrancelha, que, apesar de praticamente invisível na penumbra do cinema, foi respondido com a timbrosa porém baixa (visto que eles estavam no cinema) voz do senhor Venceslau: "Aqui não! Não vai passar e pronto." Enquanto isso, a senhora Vilma e o namorado da jovem permaneciam vidrados no filme, ignorando toda a excêntrica situação que decorria a sua volta, compenetrados pela cena em que a executiva deita na cama do hotel estrelas e decide ligar para sua melhor amiga e contar sobre o encontro com o produtor de eventos, que para a surpresa dela, está ouvindo tudo com um copo atrás da porta do quarto. O empasse entre o senhor Venceslau e a jovem esquenta ainda mais quando os outros expectadores do cinema começam a reclamar da pessoa em pé e do barulho decorrente da situação. "Silêncio" "Eu to tentando assistir" "Shhhhh" eram as frases mais ditas nos outros assentos do cinema. A garota então decidiu pedir mais uma vez, tomou forças dentro de si, olhou o senhor Venceslau novamente nos olhos e disse: "Senhor Venceslau, se o senhor não me deixar passar eu vou descascar uma laranja e usar a casca como coçador de costas por um mês". O senhor Venceslau então descruzou os braços e com uma voz propositalmente mais suave disse: "Eu adoro laranja. Eu e a Vilma sempre comemos lá em casa, não é Vilma?" A senhora Vilma então aproximou-se com o corpo e encostou a cabeça nos ombros do senhor Venceslau: "Sim. Eu gosto bastante do contraste entre doce e azedo". O senhor Venceslau então abriu um sorriso e disse: "Pode passar mocinha" e levantou a perna de uma maneira bastante acrobática, quase circense.

Enquanto ela subia rapidamente pelos degraus do corredor central do cinema, a tela exibia a cena em que o produtor de eventos está jovialmente ensinando a executiva a jogar golf, seguida instantaneamente pela cena em que ambos estão dirigindo o carrinho de golf desgovernadamente por uma área de grama alta enquanto batem em galhos de árvore e riem alto.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Expectativas

Uma mulher foi comprar o jornal na banca:

-O jornal por favor.
-São quatro e cinquenta.
-Só tenho cinco.
-O troco pode ser em bala?
-Não.
-O troco pode ser em moedas de cinco?
-Não.
-O troco pode ser uma performance de malabarismo?
-Sim.

O jornaleiro então tirou três bolas de tênis do bolso e executou lançamentos simples na técnica da cascata, na qual duas bolas são suspensas enquanto a terceira alterna entre mãos. Terminou a apresentação depois de doze jogadas.

-Aqui sua sacolinha.
-Obrigada

sábado, 21 de março de 2015

Ajustiça

Há quem diga que o mundo é injusto. O que pode ser metade verdade, dependendo de como você o define. O mundo é o produto final da relação entre natureza e civilização; apenas a segunda parte dele é julgável. A civilização, a maneira como todos seres humanos se relacionam e se relacionaram ao longo da história, pode ser pesada na balança da justiça. Ainda que esse emaranhado de ações, pensamentos, direitos, ideias e poderes sejam infinitamente complexos, são todos guiados pela moral e razão e, portanto, podem ser justos ou injustos. A natureza não.A natureza determina quais pessoas vão nascer com certas características, quais populações serão afetadas por tais doenças, quais países vão sofrer a certos desastres naturais. Ela dá a alguns qualidades genéticas de um herói e a outros, deformidades terríveis. Ela causa câncer em crianças e mantém homens de índole questionável vivos por anos. Ela joga raios em banhistas. Ela mata bebês no parto. Tudo de forma aleatória, tudo de forma desconexa. Como é possível atribuir qualquer senso de justiça a tantas inconsistências morais?

A natureza é ajusta.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A bússola

Andava oscilante pelo deserto. Nenhuma referência no horizonte. Apenas areia. A areia é a síntese do deserto: seca, traiçoeira e imensurável. O clima, pelomenosmente, era brando. Apenas dois fas e um mi. As rajadas de vento eram constantes mas acolhedoras, como a música do caminhão de gás em uma segunda de manhã. Olhou para trás para estimar quanto já havia percorrido. Via apenas uma imensidão de areia e algumas pegadas recentes; as antigas haviam sido acolhedoramente apagadas. Virou-se novamente para frente e avistou, ao longe, um punhado de grãos de areia mais escuros. Decidiu caminhar até eles. Aos poucos, os grãos foram tomando a silhueta de um espantalho, depois de um manequim e, finalmente, de um homem. Era um homem de estatura mediana, mas o fato dele usar uma cartola deixava-o substancialmente mais alto. Também trajava um paletó escuro por cima de um colete quente com alguns naipes bordados. Seus sapatos pareciam alguns números maiores o conhecimento popular palpitaria. No rosto, ostentava um vigoroso bigode loiro e olhava através de dois monóculos. Anunciou, jovialmente:

"Olá jovem viajante! Seja bem vindo ao meu humilde baazar! Tenho aqui todo tipo de item pelo qual você pode ter interesse! Você sabia que absolutamente tudo que vendo aqui na minha tenda eu encontrei aqui nesse mesmo deserto? Esse lugar é recheado de surpresas e tesouros, basta voce saber procurar! Vejo que você parece perdido, tenho aqui algo perfeito para você! Essa belíssima bûssola de cobre escandinavo! Eu mesmo usei por muitos anos, na verdade ainda uso, tenho várias em casa! Mas você deu sorte por eu ainda ter uma aqui bem guardada, elas costumam acabar rápido! Toma! Você certamente vai fazer grande proveito dela! Obrigado pelo pagamento! Volto sempre que você precisar de alguma coisa!"

Tirou do paletó uma pequena caixa de presente embrulhada com uma fita dourada e entregou-a nas mãos do viajante. No momento em que o viajante abaixou a cabeça para olhar seu presente, o vendedor já havia sumido, deixando ele novamente a sós com a areia. Andou um pouco, pensando ainda em seu excêntrico encontro até que parou e olhou para o objeto em suas mãos. Cuidadosamente retirou a fita do embrulho, tirou a tampa de cima e colocou a mão dentro da caixa.  Estava vazia. Curioso, levantou então a caixa até a altura dos olhos para examiná-la melhor. Viu seu próprio reflexo. O fundo era espelhado.